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Confissões de uma Irmã de Cinderela: O Espelho Quebrado de um Conto de Fadas

Em Confissões de uma Irmã de Cinderela, de Gregory Maguire, a narrativa clássica é virada de cabeça para baixo, como um espelho que reflete não a princesa, mas a sombra esquecida ao seu lado. Contado pela irmã postiça de Cinderela, o romance expõe as entranhas de um conto de fadas que sempre glorificou a virtude, mas silenciou a complexidade humana. Aqui, a “vilã” ganha voz, e sua confissão se revela um labirinto de inveja, culpa e desespero — uma metáfora poderosa sobre como os contos infantis podem aprisionar personagens em arquétipos rígidos, negando-lhes o direito à nuance.

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A protagonista-narradora não pede perdão nem favor; ela exige compreensão. Sua linguagem é ácida, oscilando entre a autopiedade e a autocrítica, como um rio que carrega folhas apodrecidas e sensíveis pétalas de rosa. Meu olhar psicanalítico enxerga nela uma mulher dilacerada pelo desejo de ser amada e pelo ódio de nunca ser suficiente. A rivalidade com Cinderela tem muito menos a ver com a irmã em si, e muito mais com o próprio vazio — um eco freudiano de como projetamos nos outros as partes de nós que não ousamos enfrentar.


A casa da madrasta não é um lar, mas um palco de aparências. As irmãs são educadas para competir, não para se amar, e cada gesto materno parece um cálculo disfarçado de afeto. A madrasta, distante da caricatura malvada, é retratada como uma mulher ferida, consumida pela solidão e pela obsessão com status — uma figura que espelha a sociedade que a condena. A relação entre as irmãs e Cinderela é permeada por ciúmes e culpa, como raízes entrelaçadas que sufocam e sustentam ao mesmo tempo. Contraditório? Sim. Estamos falando de relações humanas.


Gregory Maguire também subverte símbolos: o icônico sapato de cristal ganha novas camadas de significado. Não é mais um sinal do destino, mas do fracasso. Para a narradora, ele representa tudo o que ela não pode calçar: perfeição, aceitação, pureza. A cena em que o sapato não lhe serve transforma-se em um ritual de humilhação pública, onde ela encena, literalmente, o papel de "vilã" que o mundo espera dela. O sapato vira uma cela de vidro — transparente e cortante.


No baile real, a narrativa atinge o ápice da ironia. Enquanto Cinderela brilha, a irmã dança com uma máscara de arrogância, tentando convencer a si mesma de que a felicidade alheia não a fere. O salão, com seus espelhos e lustres, reflete infinitas versões distorcidas de si — uma alucinação coletiva em que todos participam do mesmo jogo de aparências. Freud diria que o baile é o palco do ego, onde os desejos reprimidos se disfarçam de elegância.


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A queda da protagonista — física e moral — durante a fuga de Cinderela é o ponto de virada. Ferida e coberta de cinzas, ela tem uma epifania: percebe que sua luta nunca foi contra a irmã, mas contra a própria imagem no espelho. As cinzas, aqui, não simbolizam apenas opressão, mas renascimento. É tocando o fundo que ela encontra coragem para questionar o roteiro que lhe foi imposto.


O reencontro com Cinderela não se resolve em perdão fácil, mas em um silêncio carregado de entendimento. A protagonista descobre que a irmã também era prisioneira daquele conto — a “heroína” obrigada a ser imaculada, sem direito à raiva ou imperfeição. Nesse diálogo mudo, há uma crítica sutil aos papéis de gênero: ambas foram vítimas de uma narrativa que as reduziu a arquétipos, negando-lhes humanidade.


O título Confissões não é acidental. A estrutura do livro lembra um monólogo terapêutico, em que a narradora despeja suas memórias como quem tenta extrair veneno de uma ferida. Seu tom flutua entre o cínico e o vulnerável, revelando que, por trás da crueldade, havia apenas medo — medo de ser invisível, medo de não merecer amor. A escrita, fluida e poética, convida o leitor não a julgar, mas a escutar.


Mais do que uma revisão de Cinderela, esta é uma história sobre a sombra que todos carregamos: a parte de nós que inveja, que erra, que não se encaixa. A obra desafia o leitor a perguntar: quantas “vilãs” foram criadas por contos que as obrigaram a ser más? E quantas Cinderelas foram aprisionadas em sua própria perfeição? No fim, o livro não destrói o conto de fadas — ele o humaniza, mostrando que até os finais felizes podem deixar cicatrizes profundas.



Em síntese: uma narrativa que usa os escombros de um mito para construir uma ponte entre o ideal e o real, entre o que somos e o que o mundo nos obriga a ser. Imperdível para quem busca histórias que não temem sujar as mãos com folhas apodrecidas enquanto garimpam suas pétalas — e, assim, encontram beleza na imperfeição.



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Título: Confissões de Uma Irmã de Cinderela ✦ Autor: Gregory Maguire

Páginas: 392  ✦ Ano: 2006 ✦ Editora: José Olympio

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Eu vou sempre amar blogs assim... Que me faz querer ler algo. Não porque tá no hype, mas porque deu realmente vontade de ler.

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