Narradores de Javé: quando contar histórias é um ato de salvação


"Narradores de Javé" filme brasileiro, lançado em 2003 é uma obra que dialoga com o poder da palavra e da memória coletiva. Em sua sinopse temos uma  uma vila ameaçada pela construção de uma represa, seus habitantes percebem que a única chance de evitar o apagamento é provar a importância histórica daquele território. Mas, como fazer isso quando a maioria não sabe ler ou escrever?
Sem spoiler, tá? A trama gira em torno de um dilema urgente: Javé corre o risco de ser submersa por uma represa. A solução? Registrar a história do povoado em um documento oficial para transformá-lo em patrimônio histórico. Só que aí mora o problema: ninguém ali sabe escrever. A saída? Recrutar o Antônio Biá, o único letrado da região, e que, ironicamente, era até então ignorado por ser o "criador de mentiras" (leia-se: cartas que causavam confusão). O que segue é uma corrida contra o tempo para transformar memórias, exageros e até rixas pessoais em um registro "sério". Spoiler leve, pode? Nada em Javé é exatamente sério.  

Aqui, a oralidade não é só um traço cultural é a alma do lugar. O filme brinca com a ideia de que as histórias que contamos moldam quem somos, mesmo que elas pareçam mais ficção do que realidade. É como quando seu pai conta que caminhou 10 km  para ir à escola, atravessava rio a nada  e você desconfia porque ele nunca aprendeu a nadar... mas, no fundo, entende que ali há uma verdade maior: a resistência, a identidade, o orgulho de existir. Em Javé, cada morador é um guardião dessas narrativas, e suas versões dos fatos, ainda que repletas de heroísmo, romance e até tramoias, revelam como a memória coletiva é feita de camadas, como uma cebola (metáfora válida porque  eu chorei como quem descasca uma assistindo esse filme).  

                                                                                
O humor surge naturalmente nas divergências entre os "narradores". Tem o sujeito que se autoproclama herói de uma batalha que provavelmente nunca aconteceu, a matriarca que transforma uma desilusão amorosa em novela das nove, e até o cachorro que, segundo alguns, teria habilidades filosóficas (sim, você leu certo). A graça está na cara de pau com que cada um defende sua versão, como se a vida dependesse dela, e no caso deles, depende mesmo. É uma comédia que não precisa de piadas prontas; basta a humanidade dos personagens, tão autênticos que você quase sente vontade de sentar na praça com eles para tomar um gole de cachaça e ouvir "mais uma história".  

Mas não se engane, por trás das risadas, Narradores de Javé é um drama sensível sobre como comunidades lutam para não desaparecer,  seja pela água de uma represa, seja pelo esquecimento. O filme questiona: o que vale mais, a história "certinha" dos livros ou as narrativas cheias de vida que nos unem? E, cá entre nós, quantos de nós não temos uma "Javé" dentro de casa, cheia de parentes que transformam um passeio no parque em Odisseia?  

Fui apresentada a essa obra no primeiro semestre de um curso de História não finalizado por mim, mas essa é uma outra história. Por hora, se você não tinha conhecimento sobre essa obra linda do cinema brasileiro, eu deixo o convite: mergulhe nesse retrato do Brasil que não está nos cartões-postais, mas nas vozes da gente comum. Narradores de Javé é daqueles filmes que você termina com um sorriso meio saudosista, um aperto no coração e a vontade instantânea de ligar para matriarca da família  e perguntar: "Me conta de novo como a receita do bolo de fubá da família surgiu?". Porque, no fim das contas, é assim que a gente se mantém vivos: um causo de cada vez.  



Só mais um adendo: o filme traz temáticas sérias,  como o aniquilamento de culturas e silenciamento de vozes marginalizadas pela violência do desenvolvimento imposta pelo poder, esse é o tronco central de sua narrativa. Em minha resenha eu quis apresentar alguns outros tantos atravessamentos da história contada, como sua delicadeza e seu lirismo. Espero que minha intenção seja válida também. Afinal, aprendi com os moradores de Javé: todo causo contado precisa ter  importância. 




🎬 CLAQUETE: 

Título Original: Narradores de Javé 
Direção: Eliane Caffé  
Ano: 2003 (Brasil)  
Gênero: Drama/Comédia  
Duração:1h40  
Distribuição: VideoFilmes  
 

Postar um comentário

2 Comentários

  1. Esse filme é tão pouco conhecido. Linda resenha!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo, por tal motivo resolvi fazer uma resenha em 2025. Nunca é tarde para apresenta-lo, Obrigada!

      Excluir