"A Casa dos Budas Ditosos", de João Ubaldo Ribeiro, é parte da coleção Plenos Pecados da Editora Objetiva. A ele coube falar da Luxúria. Assim, nos é apresentada uma narradora que se ergue como um monumento à liberdade sexual, mas cujas fundações são de puro preconceito. Ela proclama, com a boca cheia de caviar, sua pansexualidade libertária, enquanto sua mente permanece trancafiada nos porões mais empoeirados do patriarcado e da elite branca de Salvador e do Rio de Janeiro, em meados do século XX. Sua suposta revolução limita-se ao quarto; fora dele, é uma senhora de engenho, reproduzindo misoginia, racismo e elitismo com a mesma naturalidade com que descreve seus encontros libidinosos. Freud talvez visse nessa disjunção não libertação, mas uma "perversão seletiva": um ego que só consegue se afirmar na transgressão do corpo, enquanto mantém todas as correntes sociais bem apertadas.
A misoginia da narradora é um veneno elegante. Ela despreza outras mulheres com um ódio que só quem internalizou profundamente o machismo pode cultivar. Suas críticas às "inocentes", "fingidas" ou "vulgares" são projeções furiosas, um mecanismo de defesa clássico, onde ela ataca nos outros o que nega em si mesma. Vê-se como exceção no "reino das medíocres", mas sua suposta superioridade é apenas a ilusão de quem trocou o cabresto do recato pelo chicote do prazer, sem questionar quem forjou ambos. É a perversão como fuga, não como libertação: foge da condição feminina oprimida tentando possuir o desejo masculino, tornando-se, paradoxalmente, sua melhor serva.
Seu elitismo e racismo são tão naturais quanto respirar. Empregadas são "feias" ou "estúpidas"; pessoas de outras classes ou raças são reduzidas a caricaturas ou objetos de desejo exótico. Sua "liberdade" não apenas ignora as estruturas sociais que a sustentam, como depende delas. Enquanto se deleita com seus devaneios pansexuais, sua riqueza herdada e sua branquitude blindam-na de qualquer consequência real. Freud poderia interpretar essa cegueira como narcisismo perverso: a incapacidade de reconhecer o Outro em sua humanidade plena, reduzindo-o a mero instrumento ou obstáculo para seu próprio gozo. Um gozo que, no fundo, é solitário e vazio.
Aqui entra a perversão freudiana com força. Mais do que um catálogo de práticas sexuais, o livro revela uma estrutura psíquica perversa. A narradora busca prazer não pela conexão, mas pelo controle absoluto sobre o objeto (ou sujeito) de desejo. É a recusa da castração simbólica, a negação infantil da lei, da falta, do limite. Acredita poder ter tudo, dominar tudo, transgredir tudo, sem jamais enfrentar sua própria vulnerabilidade ou a realidade social. Seu hedonismo é uma fortaleza contra a angústia, mas uma fortaleza cheia de espelhos que só refletem a si mesma.
O resultado é uma personagem tragicômica. Sua proclamada liberdade revela-se uma prisão dourada de seus próprios preconceitos. É disruptiva apenas no altar do próprio umbigo. Sua aversão ao comum não é refinamento, mas medo de contaminar-se com a humanidade. A psicanálise diria que a perversão da narradora é uma solução, mas uma solução falha: estabiliza seu psiquismo ao custo de congelá-lo num narcisismo adolescente e cruel, incapaz de verdadeiro crescimento ou empatia.
Portanto, a força do livro não está na defesa das ideias da narradora, mas na exposição crua de sua hipocrisia. João Ubaldo Ribeiro, com seu bisturi afiadíssimo, dissecou o monstro perfeito: o produto acabado de uma elite que usa a bandeira da liberdade individual para mascarar sua adesão feroz às piores opressões coletivas. A narradora não é revolucionária; é um sintoma perverso do sistema que acredita transcender.
No fim, A Casa dos Budas Ditosos funciona como um espelho grotesco. A narradora, com toda sua verve e seu tesão, é menos uma deusa libertária e mais uma múmia bem vestida, mumificada em seus privilégios e preconceitos. Seus desejos não são templos de libertação, mas um museu de horrores sociais, onde a única coisa verdadeiramente ditosa é a ignorância de quem habita seus salões. Uma obra-prima do incômodo, que nos faz rir do abismo e temer quando reconhecemos seus ecos em nossa própria sociedade.
Título: A Casa dos Budas Ditosos ✦ Autor: João Ubaldo Ribeiro
Páginas: 128 ✦ Ano: 2019 (nova edição) ✦ Editora: Alfaguara
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2 Comentários
Outro fato que me incomodou horrores é que ficava muito perceptível, pelo menos para mim, que a narradora era um homem descrevendo o que ele acha que seria o comportamento de uma mulher sem pudores.
ResponderExcluirPerceptível para mim também, Jessilene. Mas ainda assim preferir lê-la como uma misógina, tão misógina que se condicionou a pensar como um homem.
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