Encontrando a melodia em um mundo desafinado: resenhando "O Lado Bom da Vida"

Publicado originalmente em 2008 pela editora Farrar (com sua linda edição brasileira pela Intrínseca), O Lado Bom da Vida (The Silver Linings Playbook), de Matthew Quick, é bem mais que uma simples história de amor. É um mergulho profundo e sensível na jornada de reconstrução de Pat Peoples, um homem que, após passar um tempo em uma instituição psiquiátrica, retorna à casa dos pais com uma missão: reconquistar sua vida perfeita, sua “eksena” (como ele chama a ex-mulher, Nikki), acreditando piamente que tudo é parte de um filme onde o final feliz é inevitável, bastando ele se manter “emocionalmente bem” e em forma. A trama é uma sinfonia de encontros e desencontros, onde a busca por um final feliz hollywoodiano esbarra na beleza complexa e imperfeita da vida real.

 Confesso que precisei reler o livro após alguns anos, pois a memória do filme havia embaralhado alguns detalhes importantes da obra original. E foi um reencontro tão bom que decidi que ele precisava virar essa resenha. Mas vamos lá, a primeira grande diferença, e a mais impactante, salta aos olhos (e ao coração) já nas primeiras páginas: a narrativa em primeira pessoa. Nós não observamos Pat; nós habitamos a sua mente. Através de seus pensamentos fragmentados, suas repetições cheias de esperança, suas explosões de raiva contida e sua lógica peculiar, temos acesso direto à sua psique ferida e querendo colapsar. Lembro que o filme nos mostra um homem perturbado, ok; mas o livro me fez sentir a textura de sua confusão, a sua luta hercúlea para montar o quebra-cabeça de uma memória que teima em se esconder dele. É ou não um caso digno de deitar no divã?

 Pois bem, é dentro deste universo mental que a teoria do psicanalista Donald Winnicott pode iluminar como um farol. Winnicott fala da importância do “ambiente facilitador”, uma rede de apoio estável, amorosa e não intrusiva, para o desenvolvimento de um “eu” saudável. Pat, ao sair da instituição, é como alguém que precisa renascer para o mundo. Mas seus pais, especialmente o pai, com sua superstição e raiva explosiva, são um ambiente falho, imprevisível. E é aqui que Tiffany Cummings entra não como um simples interesse romântico, mas como uma mãe suficientemente boa winnicottiana. Ela não é dócil; ela é espinhosa, verdadeira e desafiadora. Ela não se ajusta passivamente às necessidades de Pat; ela o espelha. Ela reflete sua dor, sua esquisitice, sua intensidade, mostrando a ele que não está sozinho em sua loucura. A dança, no livro, não é apenas uma metáfora bonita; é o setting terapêutico perfeito, um espaço delimitado e seguro onde dois seres feridos podem se conectar sem palavras, negociando passos, limites e emoções.

 No filme, a trama se concentra mais no romance e no clímax da competição de dança. O livro, no entanto, dedica muito mais páginas à obsessão de Pat por Nikki e, crucialmente, à sua relação com o irmão, Jake, e os amigos. Esses relacionamentos masculinos revelam a pressão tóxica de um mundo que exige “normalidade” e sucesso, um mundo do qual Pat se sente excluído. A metáfora do Philadelphia Eagles e a superstição do pai não são apenas pano de fundo; são a representação de um universo de regras rígidas e inquestionáveis com as quais Pat, em sua busca por uma lógica simples (“se eu me comportar, terei meu final feliz”), tenta desesperadamente se alinhar. E isso é de moer o coração.

 A jornada de Pat é, no fundo, a busca pelo seu “Verdadeiro Eu” winnicottiano, soterrado sob o trauma, a depressão e as expectativas alheias. Seu “Falso Eu” é a persona do “bom moço” que ele tenta desempenhar para agradar a todos e merecer Nikki de volta. Tiffany, com sua honestidade brutal, é a única que consegue quebrar essa casca. Ela não quer o Pat “bonzinho”; ela quer o Pat real, com toda a sua bagunça e intensidade. Ela oferece a ele o que Winnicott chamaria de “experiência de ilusão”: a crença momentânea de que a dança pode consertar tudo. Mas, gentilmente, ela também o leva à “desilusão”, mostrando que a verdadeira cura não está em um final de filme, mas na capacidade de abraçar a vida como ela é: imperfeita, imprevisível e profundamente bela em sua complexidade.


 📍Atenção: os próximos parágrafos contêm spoilers sobre o desfecho do livro!

 O clímax do livro é mais sutil e poderosamente psicológico do que no filme. A grande revelação não acontece durante uma competição de dança, mas em uma conversa crua com o irmão, onde Pat finalmente acessa a memória reprimida do evento traumático que levou ao colapso de seu casamento e sua internação. É um momento de dor insuportável, mas também de libertação. Ao encarar a verdade de sua própria raiva e do seu sofrimento, Pat pode, finalmente, deixar para trás a fantasia do “filme” e da “eksena”. Ele percebe que a vida não é um roteiro previsível, mas uma dança que se inventa a cada passo. A cura começa quando ele entende que não precisa mais ser perfeito para ser amado.

 E assim acessamos o lado bom da vida. Não como prêmio de bom comportamento, mas como conquista interior. Pat não fica com Nikki; ele percebe que o amor que buscava não estava no passado idealizado, mas no presente, na conexão autêntica e louca que construiu com Tiffany. O final é aberto, mas cheio de esperança. Eles não ganham uma competição; eles simplesmente dançam, juntos, na rua, sem plateia, sem palcos, apenas dois seres imperfeitos se encontrando em sua melodia única. É a vitória do “Verdadeiro Eu” sobre o “Falso Eu”, a aceitação de que a felicidade não é um destino a ser alcançado, mas uma dança a ser vivida, um passo de cada vez, com toda a delicadeza e coragem que isso exige. Uma metáfora e tanto, não acha?


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Título: O Lado Bom da Vida  ✦ Autor: Matthew Quick
Páginas: 320  ✦ Ano: 2013 ✦ Editora: Intrínseca


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