A busca por si mesma em "Comer, Rezar, Amar"

 

Publicado no Brasil em 2007 pela editora Objetiva, "Comer, Rezar, Amar" da escritora norte-americana Elizabeth Gilbert tornou-se um fenômeno cultural. Muita gente conheceu Comer, Rezar, Amar (Elizabeth Gilbert) pelo filme estrelado por Julia Roberts em 2010,  mas o livro é uma experiência bem mais profunda na minha opinião. O filme mostra paisagens lindas da Itália, Índia e Indonésia. Já o livro nos leva para dentro da cabeça e do coração da autora. É aquela diferença entre tirar uma foto bonita de uma viagem e escrever no diário tudo o que realmente aconteceu por dentro.

E é aí que acontece a mágica: além de um relato de viagem, o livro é também um mergulho numa crise existencial. E se a gente olhar pela lente da psicanálise, a jornada da Elizabeth ganha camadas riquíssimas que o filme não dá conta de mostrar

A primeira parada, na Itália, sob o signo de "Comer", pode ser lida como uma rendição total ao Id. Após um divórcio devastador e uma depressão profunda, Liz permite-se mergulhar nos prazeres mais primitivos e imediatos: a comida, o vinho, a beleza da língua. Freud descreveria o Id como a parte infantil de nossa psique, que grita "Eu quero agora!". É a busca pelo prazer sem qualquer freio. Gilbert, em Roma, não se culpa por devorar um prato de massa ou ganhar alguns quilos. Ela está, na verdade, se reabastecendo, curando a parte de si mesma que havia sido negada durante um casamento infeliz. É a fase necessária de reconexão com os prazeres simples da vida, a base sobre a qual se reconstrói um ego fragilizado.

Se a Itália foi o Id, o ashram na Índia é a encarnação do Superego mais rigoroso. Aqui, Liz se depara com a voz internalizada da lei, da moralidade e da autocrítica. Sua prática de meditação é um campo de batalha onde o Superego, aquele "pai severo" interior, a castiga por seus pensamentos dispersos, suas mágoas passadas e sua incapacidade de "se iluminar" rapidamente. A luta para silenciar a mente é, na verdade, a luta para negociar com esse Superego que exige perfeição. Freud veria essa fase como crucial: é apenas enfrentando e domesticando a rigidez dessa voz crítica que podemos encontrar um ponto de equilíbrio. Ela não está lutando contra Deus ou um guru, mas contra a parte de si mesma que a punia por ter falhado.

Para mim, o grande triunfo de Liz, e da narrativa,  ocorre na Indonésia, sob o tema "Amar", onde ela finalmente constrói um Ego saudável. Para Freud, o Ego é o negociador, a parte consciente que media os desejos explosivos do Id e as demandas irrealistas do Superego. Em Bali, Liz não nega os prazeres (mantém amizades, come, se apaixona), mas também não foge da responsabilidade (ela ajuda a família de seu amigo, o curandeiro Ketut Liyer). Ela aprende a ouvir a intuição sem ser impulsiva e a ser responsável sem ser punitiva. A relação com o brasileiro Felipe é o teste final: é um amor que não a consome, mas a complementa. Ele representa a aceitação de um vínculo sem a perda da individualidade, a marca de um Ego fortalecido.


E psicanaliticamente  descrevendo, não há nada tão fascinante quanto seu "casamento consigo mesma" em Bali. Este ritual simbólico é um poderoso ato de catarse. Ao prometer amor, respeito e fidelidade a si própria perante testemunhas, Liz está performando a cura de sua divisão interna. É como se ela integrasse a parte que ama (o Id), a parte que julga (o Superego) e a parte que executa (o Ego) em um único ser. Freud via tais rituais como formas de acesso e ressignificação de conteúdos inconscientes traumáticos. Ela não está apenas se curando de um divórcio, mas de uma autoimagem fraturada. Este é um momento de profunda insight que o filme dificilmente consegue transmitir com a mesma força.

Assim sendo, recomendar a leitura do livro para quem só viu o filme vai além do clichê "o livro é sempre melhor". Trata-se de acessar a matéria-prima do inconsciente que a narrativa cinematográfica, by its nature, precisa condensar e externalizar. O livro nos dá o monólogo interior, as hesitações, os sonhos e os recuos, todo o material bruto que um psicanalista escutaria no divã. A viagem de Elizabeth Gilbert é, em sua essência, uma longa sessão de autoanálise, onde ela assume, alternadamente, o papel de paciente e de terapeuta de si mesma, buscando integrar as partes de sua psique que estavam em guerra.

Em última análise, preciso insistentemente dizer que "Comer, Rezar, Amar" resiste à pecha de mero autoajuda porque não oferece fórmulas. Oferece um processo. Através de uma linguagem fluida, honesta e cheia de humor, Elizabeth Gilbert nos convida a testemunhar sua luta para encontrar o ponto de equilíbrio entre o que desejamos, o que devemos e o que podemos ser. Seu legado é nos lembrar que toda jornada verdadeira é, antes de tudo, uma viagem para dentro de nós mesmos, um convite a comer a vida com prazer, rezar, orar, meditar com compaixão e amar com um ego inteiro, não pela metade.


Título: Comer, Rezar, Amar ✦ Autor: Elizabeth Gilbert
Páginas: 360  ✦ Ano: 2007 ✦ Editora: Objetiva

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