A metáfora da coragem e do trem em "A Viagem de Chihiro"


 Há filmes que são como baús de memórias, e "A Viagem de Chihiro" é um deles, guardando não apenas a narrativa genial de Hayao Miyazaki, mas também as sementes emocionais que plantou em seus espectadores. Para mim, essa obra foi mais do que uma animação; foi um espelho colocado diante de minha alma adolescente, refletindo medos primordiais. A assustadora transformação dos pais em porcos foi um choque de realidade, um presságio involuntário da finitude que a vida, anos mais tarde, traria. Daquele susto nasceu uma palavra-âncora. Uma tatuagem mental indelével: coragem.

 A coragem que nomeio não é a ausência do medo, mas a decisão de seguir em frente apesar dele, tal qual Chihiro faz ao descer a escadaria escorregadia ou ao enfrentar a temível Yubaba.  Reassistir recentimente a esse filme,  agora adulta portando as cicatrizes de perda, luto e desilusões que são inerentes ao estar viva,  consigo ver de forma ainda mais nítida  a beleza circular da arte: ela nos encontra exatamente onde estamos. O que antes era um grito de alerta sobre a perda, tornou-se um lembrete suave de que eu, assim como a protagonista, tenho sido capaz de navegar pelas próprias sombras, usando a coragem como bússola interior.

 E é nesse contexto de ressignificação que a cena do trem emerge, não mais como uma simples sequência narrativa, mas como a epifania central de minha interpretação pessoal. Ela transcende o plano da animação para se tornar um quadro vivo da condição humana, um momento de pura poesia visual que encapsula a profundidade filosófica da jornada de Chihiro, e a nossa. É o instante em que a narrativa abre um suspiro, convidando-nos a refletir sobre o rumo que estamos tomando.


A cena do trem sobre as águas límpidas é um oásis de quietude em um mundo caótico. Chihiro, agora mais centrada em seu propósito, embarca em uma viagem silenciosa, acompanhada por seres fantasmagóricos e passageiros translúcidos. Visualmente, é uma das sequências mais hipnóticas já criadas pelo Studio Ghibli. O trem, um veículo comum, transforma-se em um barqueiro de almas, deslizando sobre um mar infinito que reflete o céu, borrando as fronteiras entre o céu e a terra, o real e o onírico. A trilha sonora etérea de Joe Hisaishi, "The Sixth Station", acentua essa atmosfera melancólica e contemplativa.

 Miyazaki, em sua genialidade, não oferece uma interpretação única. Para muitos, a viagem de trem representa a transição pacífica entre a vida e a morte, um rio Estige moderno onde espíritos anônimos seguem seu curso. Para outros, é uma metáfora do amadurecimento: um momento de solitude necessária no caminho para a idade adulta, onde olhamos pela janela e refletimos sobre quem fomos e quem desejamos ser. É a pausa entre uma batalha e outra, o momento em que a coragem não se manifesta em ações grandiosas, mas na quietude de permanecer no curso, confiante de que o trem chegará ao seu destino.

 A minha leitura, no entanto, tenta tocar no cerne da metáfora com a clareza que me cabe. Para mim, o trem é a própria vida em movimento. Cada assento ocupado por um espírito silencioso representa as pessoas que cruzam nosso caminho, algumas por toda a viagem, outras apenas por uma estação. A paisagem serena que se desenrola do lado de fora é a beleza e a dor que testemunhamos quando temos um sentido, um "porquê" que nos mantém nos trilhos. E o destino final, a casa de Zeniba, é a clareza interior de saber onde e quando desembarcar, fruto de uma jornada internalizada e compreendida.

    

Assim, a cena do trem em "A Viagem de Chihiro" se torna um legado universal e, ao mesmo tempo, profundamente pessoal. Ela nos ensina que a verdadeira coragem não é forjar um caminho sem obstáculos, mas embarcar na viagem, aceitar a natureza passageira de seus companheiros e confiar na própria capacidade de escolher o ponto de desembarque. Ao reviver essa cena com os olhos de quem já percorreu trilhas dolorosas, acredito ter captado sua essência mais pura: a vida é uma viagem solitária e coletiva ao mesmo tempo, e a maior coragem é seguir adiante, com a serenidade de Chihiro olhando pela janela, sabendo que cada paisagem, seja de luz ou de sombra, é parte indelével do trajeto.

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🎬CLAQUETE: 

Título: A Viagem de Chihiro
Titulo Original: 千と千尋の神隠し
DireçãoHayao Miyazaki
Ano: 2001 (Japão)  
Gênero: Animação | Aventura
Duração: 125 minutos
Onde assistir: Netflix (Ou adquira DVD pela Amazon)




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2 Comentários

  1. Lindíssima sua resenha. A qualidade desse filme é impecável. E ainda que ele não tenha mexido tanto comigo, compreendo que se sente mexida por ele.

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    1. Sim, a qualidade dele é inquestionável. Obra prima da arte em meu entender.

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